OPINIÃO
O renascer de um mundo pós-COVID-19?

Por Marco Martins*

O mundo vive hoje um tempo conturbado onde a incerteza continua a perspetivar-se como a única certeza, citando Jonathan Swift e Edgar Morin. De facto, todos os conflitos internacionais que se encontram ainda em curso, dos quais registamos a Síria, parecem ter obtido um tempo de pausa para dar lugar a uma pandemia à escala global, denominada de COVID-19, cujo epicentro se localizara na cidade de Wuhan, na Província de Hubei, atingindo para o efeito mais de 180 países e cujas mortes e infetados crescem exponencialmente a um ritmo frenético causando a generalização do medo e gerando simultaneamente a nossa capacidade de sobrevivência que se encontrava adormecida ou anestesiada pela força da razão de um viver existencial tendo por base o tempo imediato dos acontecimentos na nossa esfera armilar, entre realidades e virtualidades cibernéticas.

Precisamente, hoje, esta Europa que se preparava para comemorar, a 14 de junho de 2020, os 35 anos do primeiro passo para a criação do espaço Schengen, por ordem imperativa, viu-se por necessidade de emergência encerrar esse sonho de livre circulação e de garantia de segurança para os seus cidadãos, num estado de emergência sem paralelo a não ser em tempos de guerra como o foram as Primeira e Segunda, de causa europeia e de consequência mundial.

Parece que, neste dia, assistimos a um episódio dos Walking Dead onde o mundo em utopia aceleradamente, pela mão do homem, se tornou numa distopia, ou seja, atravessámos a fronteira de um sonho de uma obra por construir à semelhança da Mensagem de Fernando Pessoa, para realidades de tempos de Idade Média e não só, submersos em regressão em pleno século XXI. Se há 35 anos decidiu-se abrir o mundo, porque de um todo fazemos parte, neste momento, damos por encerrado o mesmo por emergência causando uma interrupção da vida humana do social à economia global cujas consequências ainda se estarão por medir, apesar de vários cenários se colocarem à nossa disposição.

De outro modo, o encerramento de fronteiras significa o erguer de um muro para a construção da União Europeia, revelando a sua incapacidade de gerir uma pandemia desta natureza e violência, onde qualquer Sistema Nacional de Saúde por melhor que esteja preparado, por não responder com a eficácia exigida para salvar os seus, devendo para o efeito, da parte dos médicos decidirem conforme a esperança de vida o direito à vida, seja em Itália seja em Espanha. Contudo, apraz-nos referir que talvez esta União Europeia se tenha afastado da sua base inicial, do seu sonho quando esta Europa saíra de um confronto onde milhões terminaram por não acordar no dia seguinte. Durante as últimas décadas, Bruxelas e seu sistema afastaram-se progressivamente a passos largos do caminho do homem, dando esse lugar à tecnocracia e à obsessão de valores financeiros inalcançáveis para a maioria dos Estados-membros, provocando divisões internas sem paralelo na sua história, devendo para o efeito sacrificar estruturas como a saúde e a educação ou até o setor da defesa e segurança por questões de controlo de défice.

Diga-se de passagem, que a presente União Europeia se afastou de uma idealização para um realismo financeiro onde o lugar de cada um em coletivo terminara por ceder à obsessão frenética individual, em que presentemente cedera esse espaço à necessidade de viajar pelo túnel do tempo para que o conceito de solidariedade retome o seu sentido conforme Lech Walessa um dia, também por imperativo de emergência, lutara em nome da solidarnosc para que a mudança social possa constituir a obra e o sonho de um povo. A aspiração das 12 estrelas que compõe a bandeira europeia representa um legado político do ocidente na construção de uma memória por viver, contudo, apenas há umas semanas essas fronteiras cederam a passagem sem controlo a um vírus proveniente do outro lado do mundo, originando a abertura de uma porta para o inferno, recordando a Divina Comédia de Dante Alighieri, entre a vida e a morte num caos ordenado. Será a Europa capaz de ultrapassar e de recuperar a sua forma inicial ou por sinal alterar o seu curso? Eis a questão que se nos emerge perante a violência a que presenciamos.

Certamente que a resposta se revela de afirmativa no sentido de que seja capaz de regressar ao reposicionamento a que se encontrava anteriormente, não significando que reencontraremos a mesma forma pela devastação de famílias que por inteiro desapareceram, onde até alguns se viram forçados a permanecer no mesmo local enclausurado com o seu semelhante já perecido, onde o sofrimento se revela de inimaginável para quem o passou. A Europa irá certamente reverter a sua curva de valor financeiro para se reposicionar à escala humana, na reconstrução de um mundo afetado por uma pandemia. Naturalmente, Bruxelas procederá a uma autoavaliação e correção das suas políticas para retomar com urgência o verdadeiro projeto europeu, na reedificação do ser para que se ganhe de novo a esperança de que se possa viver num mundo melhor, onde a ciência e a educação, para além da saúde constituem prioridades nas diversas políticas, seria um erro utilizar este vírus a pretexto do reforço securitário para se erguerem de novo os muros que nos separaram outrora.

Aqui o sector diplomático revela-se essencial, um instrumento dos estados nas suas relações internacionais por excelência, para que se consiga reequilibrar a balança do poder entre as diversas potências na sua ascensão e queda conforme Paul Kennedy analisa na sua obra. Por outras palavras, a incerteza desta aventura humana (Edgar Morin) face ao COVID-19 vem desequilibrar a balança e posicionar a República Popular da China como o fiel que procura pela via diplomática dar apoio e demonstrar solidariedade junto de quem mais necessita neste momento, precisamos como José Adelino Maltez sublinha de dar voz à dignidade humana em nome do respeito pelo princípio da igualdade. Assim, as seis principais potências e seus líderes, Estados Unidos, Rússia, China, Alemanha, França e Reino Unido reconhecerão de que não bastará dar continuidade à defesa do interesse nacional sem a defesa da esperança numa sociedade atingida na sua globalidade, onde o mundo e o seu meio ambiente puderam novamente respirar por redução dos índices de poluição, dando aqui ânimo ao à fauna e flora. Nesta circunstância, acentuamos a capacidade de autopoiesis do sistema no qual vivemos, em que se termina por recuperar um instante neste tempo que passa nem que seja ao verificar que ainda se revela possível de habitar neste planeta, citando aqui Silvério da Rocha Cunha quando alude à possibilidade do improvável acontecer.

Em ascensão, a China, com uma Europa em reconstrução social e económica, tal como veremos os Estados Unidos em decadência, não deixando o lugar vazio, mas sim ocupado por outro.

Por um lado, a questão central da reorganização da ordem mundial jogar-se-á entre estas potências onde o problema reside em saber se a democracia continuará a ser a melhor forma de sociedade ou se, excetuando a China, revela-se impreterível optar por uma forma mais musculada de governação no que respeita o controlo e na garantia securitária. Por outro lado, qual é a criação ou forma de poder que assumirá esta nova reorganização mundial no pós-COVID-19, visto o empoderamento ser a palavra de ordem? Os Estados Unidos, em plena crise de saúde pública, terão por missão perante a China, seu rival, no campo geopolítico e geoeconómico, não permitir a ascensão da mesma ao seu lugar na arena internacional, contudo, a rivalidade entre aquilo que represente no sistema internacional um e outro, já que o vírus, tudo dependendo do seu grau de desenvolvimento nos Estados Unidos, poderá colocar em causa e fragilizar o sistema militar o que caso venha a suceder um conflito internacional ou cenário de guerra, não se revela animador para a comunidade ocidental tal prospetiva, dado que neste momento cerca de 900 milhões de seres humanos se encontram isolados e a economia praticamente paralisada.

Com efeito, a cooperação parece sem dúvida constituir a melhor alternativa para prosseguir o clima de confiança na estratégia de recuperação da sociedade civil e das economias, quer na procura de uma vacina e cura eficazes quer para evitar uma nova paralisação que nos coloque entre a escolha da vida e da morte. Neste novo mundo que se afigura à nossa frente, parece-nos de maior relevância que haja uma redefinição do valor humano, da ciência, da luta pelo bem-estar e sobrevivência do homem, visto neste momento morrerem milhões de crianças de fome e doença, não mencionando aqueles em fuga de conflitos como o da Síria, onde permanecem esquecidos porque para muitos apenas pelos vistos de trata de resumir este flagelo em nome de uma pretensa ideologia como se estivéssemos em combate entre capitalismo, marxismos ou neoliberalismos.

Não se trata de circunscrever apenas a questões ideológicas, a humanidade é a sua condição à semelhança de André Malraux e não o oposto. Precisamente, neste desafio à escala global onde se passou da segurança e do aparentemente estático para a incerteza e dinâmica onde todos apenas e tão-somente desejam sobreviver, esquecendo e marginalizando tudo aquilo que viviam no dia n-1 do COVID-19.

Em síntese, algo de facto este vírus mudou, da incerteza, a certeza de que esta geração que não conhecia o flagelo da morte de épocas vividas e sentidas em século XX, veio em tempo imediato confrontar-se com uma realidade para a qual não se encontraria preparada, visto viver o seu quotidiano em redes sociais e mecanizada às tecnologias portáteis em regime de autoproteção. Na verdade, para além da procura do reequilíbrio na arena internacional, torna-se evidente a imperatividade e a real possibilidade de gerar um novo contrato social, no qual as regras atuais do jogo deverão ser alvo de alterações num mundo interdependente onde tudo não poderá permanecer igual como anteriormente ao COVID-19, aqui a opção caberá à sensibilidade de quem governa em cada estado-membro e de quem decida em Bruxelas, para além das principais potências, nunca Kant foi tão necessário tal como Rambo e seu realismo porque enquanto isso, o Daesh e os conflitos internacionais em curso, esses não optaram pela pausa, determinando para o efeito a recuperação da solidariedade do Atlântico ao Pacífico.

Daqui quer a Europa e o eixo ocidental no seu conjunto dependerá da capacidade de os Estados Unidos recuperarem desta crise, porque neste momento está em curso quem tenderá a ocupar o lugar deste país na sua influência na Europa face à China, enquanto que a Rússia, estrategicamente opta pela não disputa entre os dois. Aqui, Portugal terá uma voz de maior relevância, não só pela nacionalidade do SG da ONU, António Guterres, mas pelo exemplo que tem demonstrado ao longo da sua existência na recuperação de valores tal como aqueles referenciados no luso-tropicalismo de Gilberto Freyre.

 

* Marco António Baptista Martins

Professor de Relações Internacionais | Departamento de Economia da Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora

Investigador do Centro de Investigação em Ciência Política/UÉ

 

 

Publicado em 26.03.2020
Fonte: GabCom | UÉ