Entrevista a Manuel Collares Pereira

O desenvolvimento sustentável é uma questão central no século XXI. Manuel Pedro Ivens Collares Pereira, à frente da Cátedra Energia Renováveis da Universidade de Évora entre 2010 e 2019, centrou a sua actividade, juntamente com a sua equipa, na Energia Solar de Concentração, com enfoque nas novas tecnologias de captação e transformação de radiação solar em calor e em electricidade, quer por via fotovoltaico quer por via térmica. Optimista por natureza, o investigador acredita no Plano Nacional Energia e Clima mas alerta que a mudança de paradigma exige uma alteração societal.

Universidade de Évora (UÉ): Foi para o Instituto Superior Técnico (IST) em 1968. Ingressou na licenciatura em Engenharia Electrotécnica. Quais os motivos para escolher este curso?

Manuel Collares Pereira (MCP): Não queria propriamente estudar Engenharia Electrotécnica mas sim Física. Sempre achei que seria um físico. Na altura, o melhor local para estudar estas áreas, em Lisboa, era no IST, ainda que este não oferecesse a licenciatura especificamente em Física. Durante o curso foi possível propor a criação de mais de dez novas cadeiras [de opção] na área da Física, mais próximas do que era a minha ambição. Assim “arrastei” comigo outros colegas e a ideia entusiasmou alguns professores, principalmente  mais novos, doutorados no estrangeiro, que tinham, de uma forma geral, uma visão mais “evoluída”. Foi assim que consegui fazer o curso mais próximo possível da Física. Admito que, ao longo dos anos, acabei por sentir a falta de algumas cadeiras mais ligadas à electrónica, mas confesso que na altura não pensei nisso.

 

UÉ: Conclui a licenciatura com 18 valores e em 1974 ruma aos Estados Unidos da América, mais propriamente para a Universidade de Chicago, numa data muito particular para o nosso país.

MCP: Exacto. Desde cedo pensei ir estudar para os Estados Unidos mas sabia que, para conseguir ter sucesso, tinha que ter boas notas. Foi uma motivação forte. Consegui uma Bolsa Fulbright, do Instituto de Alta Cultura (IAC), o que me permitiu optar entre várias universidades americanas. A minha escolha recaiu pela Universidade de Chicago, por considerar ser uma das melhores universidades do mundo. E sim, realmente é verdade, terminei a licenciatura no dia 4 de abril, portanto, antes do 25 de abril de 1974. Sinceramente parti, em Setembro, “cheio de pena”, porque sentia que o nosso país estava a mudar de uma forma muito importante, muito radical. Tive pena de não fazer parte desse processo, mas tinha a bolsa e todas as condições para partir e uma carreira para preparar. Mas foi sem dúvida uma altura muito conturbada e entusiasmante na nossa vida colectiva.

 

UÉ: Foi para doutorar-se em Física?

MCP: Sim, mas para ingressar mesmo no doutoramento na Universidade de Chicago tinha que ter o grau de Mestre, por essa razão, e antes de ser admitido ao respetivo doutoramento foi necessário realizar um exame de candidatura. Foi um ano de preparação, com cadeiras na área da física a um nível mais exigente e só depois fui submetido a exame, tal como os restantes colegas. Na altura, quando o resultado era positivo mas menos satisfatório, a Universidade atribuía o grau de mestre;  aos restantes, abria então  as portas para o inicio do programa de doutoramento. Foi o que sucedeu no meu caso.

 

UÉ: E numa área aplicada à Energia Solar, concretamente na área da Óptica anidólica. Em que consiste?

MCP: É interessante, mas não fui com essa intenção. A ideia era continuar a estudar o que tinha iniciado em Portugal, até porque, antes de partir, e a convite de professor António Silveira, ilustre professor de física no Técnico, fui assistente de investigação no então recém-criado Instituto de Física e Matemática, onde cheguei a fazer investigação sobre aspectos ligados à massa dos “quarks”.

A minha intenção na Universidade de Chicago era estudar Física das Partículas. No fundo esse era o meu real interesse - a física mais fundamental - a que explica o Universo e a sua evolução, ao nível mais elementar, essencial. Acontece, porém, que, houve  cadeiras do programa de doutoramento com uma componente muito forte em física experimental e isso encantou-me (não tinha praticamente experiencia previa em Física experimental de alto nivel) e decidi que o meu futuro de investigador teria de ter essa componente.  

 

UÉ: Foi nessa ocasião que colaborou com o professor Roland Winston, inventor do concentrador parabólico composto, uma tecnologia inovadora em energia solar. Como surgiu essa oportunidade?

MCP: Assisti a uma conferência sobre óptica aplicada à concentração da radiação solar daquele que veio a ser o meu orientador, o professor Roland Winston. Pareceu-me fascinante porque, pensando no futuro, podia continuar a estudar na área da física teórica mas agora tinha também uma nova área com um lado experimental fortíssimo. Dirigi-me ao gabinete do professor e propus-me trabalhar com ele. Como deve imaginar não aceitou de imediato. Nesse dia, o professor Roland Winston colocou-me um problema e exigiu uma solução para apresentar no dia seguinte. O facto é que nessa noite não dormi. Acredite que foi algo trabalhoso, mas cheguei a uma solução, deixando-o suficientemente impressionado para me convidar a ficar. Tive a sorte de estar no sítio certo, à hora certa com a pessoa certa, o que veio a permitir nos anos seguintes contribuir para o desenvolvimento de toda uma  nova área, a óptica não produtora de imagem.

 

UÉ: O que diferencia esta tecnologia?

MCP: A óptica anidólica é também conhecida como óptica sem imagem ou óptica não geradora de imagem. São sistemas ópticos não convencionais. Geralmente os sistemas de formação de imagem são capazes de pegar num objecto, e produzirem a sua imagem, ponto por ponto sobre um alvo. A optica anidólica tem um objectivo diferente. Supondo que o objecto é um emissor de energia radiativa, o objectivo poderá ser o de obter sobre um alvo (receptor) toda a energia emitida, eventualemente até de uma forma que corresponda a um fluxo ( energia por unidade de área) superior. Ora, neste caso, a relação ponto do objecto/ponto da imagem, não é o que interessa.  È precisamente prescindindo disso, que a nova optica permite usar os graus de liberdade correspondentes ao processo de focagem, para obter fluxos de energia no limite de concentração que a própria física estabelece.  Podemos aplicar este conceito à concentração de irradiação solar e obter novos equipamentos para aplicações que incluem a produção de calor para múltiplos fins térmicos (calor de processo para a industria, nos edifícios- frio e calor, água quente- na confecção de alimentos, etc), para converter a energia térmica em energia eléctrica, para a produção de combustíveis ditos solares, para a descontaminação da água, etc. Resumindo: esta é de facto uma nova área da optica,  a das ópticas não focalizantes, que não produzem imagem, pois estão  “interessadas” é na concentração de energia conseguindo fluxos mais elevados. Foi essa a grande descoberta feita pelo professor Winston.

 

UÉ: De regresso a Portugal, durante anos 80 e 90 presidiu, fundou e colaborou em inúmeros projectos nacionais e internacionais na área da energia solar. Foi um percurso de insistência!?

MCP: Sem dúvida. Falar agora em energia solar parece algo evidente, mas na altura não era, por isso a par do desenvolvimento da tecnologia em si, estive preocupado com o lado mais pedagógico e até político destas questões. Recordo-me que, quando propunha determinadas ideias, estas eram encaradas como uma mera curiosidade, cuja utilidade prática ninguém reconhecia. Não podemos esquecer que nessa altura o petróleo era “baratíssimo” e ninguém falava em alterações climáticas, por isso, as tecnologias que propunha eram vistas como “exóticas”. Podia até apresentar estas ideias de forma interessante e apelativa mas, na realidade, as  ideias  eram vistas apenas  como uma mera curiosidade para  “espíritos diletantes”; Mas não desisti, porque sabia que este assunto era, e continuará a ser, demasiado importante.

 

UÉ: Inclusive escreveu alguns livros onde nos convoca a alterar a nossa percepção sobre o uso das energias renováveis.

MCP: No final dos anos noventa publiquei «Energia Renováveis, a opção inadiável» (1998) que sublinhava isso mesmo. Felizmente, enquanto sociedade, começamos a tomar maior consciência dos impactos das alterações climáticas, e de que os recursos fósseis convencionais são realmente finitos. Nessa altura começa também a constatação de estarmos a atingir o pico do petróleo convencional, compensado por petróleo não convencional (mais caro e com um investimento energético e impacto ambiental maiores na sua extração). Entretanto apareceu um novo “player” ,  o fraturamento hidráulico, ou fracking, uma técnica projectada para recuperar gás e petróleo de rochas de xisto, muito usada nos EUA, mas que teve, tem e terá impactos ambientais fortíssimos e devastadores. A questão da disponibilidade dos combustíveis fósseis e o impacte ambiental manifestado no clima,  colocaram o tema meio-ambiente na ordem do dia e o assunto foi ganhando maior peso político e social. A crescente consciencialização relativa às alterações climáticas predominantemente resultantes da queima dos combustíveis fósseis,  está a mudar extraordinariamente o  paradigma da oferta (e da procura?!) da energia, tornando agora possível apostar cada vez mais na utilização de energias limpas.

 

UÉ: Liderou a Cátedra Energias Renováveis na Universidade de Évora. O que investiga esta cátedra e o que a distingue?

MCP: Quando me candidatei e fui selecionado no concurso internacional para Titular da Cátedra, o meu objectivo era realizar o que não tinha sido possível realizar em outros locais, em Portugal. Encontrei na Herdade da Mitra da UÉ as condições ideais para ensaiar este tipo de concentradores a altas temperaturas. A utilização destas tecnologias no mercado é fundamental para criar uma indústria capaz de produzir concentradores que convertem energia solar em energia útil, o que permite, por exemplo, aquecer água, fazer vapor, fazer frio, secar produtos agrícolas, produzir electricidade, etc; pensar em temas como a  dessalinização e produzir água potável a partir de águas salobras, sem limitações sobre o valor da temperatura necessária, pois a concentração da irradiação solar permite obter o que faça falta. 

Aqui em Évora, iniciamos o desenvolvimento de tecnologia com a possibilidade de utilizar temperaturas  elevadas para produzir vapor para a indústria e electricidade por via térmica, tal como acontece por exemplo na central a carvão de Sines, que produz vapor a 540º. Se tal facto é possível com o calor resultante da queima do  carvão, não havia razão nenhuma para  não se pensar em fazer o mesmo através do sol, utilizando uma óptica que permita uma concentração adequada. Actualmente trabalhamos em colaboração com dezenas de empresas, principalmente estrangeiras, e com futuros fabricantes, de forma a garantir a transferência de tecnologia e a fruição desta para o mercado. Os desafios são de vária ordem e extravasam a vertente técnica, são também societais, envolvem a forma de estar das próprias  empresas que tendem resistir, como primeira reação,  à mudança. Mas devo dizer que hoje em Portugal há já muitas empresas “muito activas”  na área das Renováveis. Algumas associações como a APREN ou o IPES contêm inúmeros exemplos. Algumas empresas são um enorme sucesso, até fora de Portugal, como é o caso da  EDP Renováveis. Por outro lado e ainda muito recentemente, foi lançado o Plano Nacional de Energia-Clima (PNEC) 2030, uma resposta politica- finalmente-  à necessidade de mudança  e que muito nos entusiasma .

 

UÉ: Portugal comprometeu-se a contribuir para limitar o aumento da temperatura média global do planeta a 2ºC., e a fazer esforços para que esta não ultrapasse os 1,5ºC. É da opinião que este plano responde ao compromisso da neutralidade carbónica em 2050?

MCP: Sim, creio que sim. O PNEC tem o mérito de definir claramente os objectivos. Mas não podemos esquecer que não basta definir objectivos, é necessário ter a estratégia e os meios para a sua concretização. Encontro no discurso do actual Governo uma vontade de encontrar esses meios, correspondendo às próprias linhas orientadoras da União Europeia. E, hoje, já podemos oferecer melhores soluções a um custo relativamente baixo quando comparado com as energias convencionais. Até ao momento estou optimista! Se vai chegar ou não aos objectivos globais de controlo de temperatura, vai depender dos planos que desenvolvam todos os outros países. Contudo cada um tem de fazer o mais que puder e o nosso compromisso de neutralidade carbónica não pode ter uma natureza diferente. Esta é uma necessidade que deveria ser assumida por qualquer partido que venha a ser Governo de aqui até lá. No futuro não poderemos votar em quem não tenha este tema como prioridade. 

 

UÉ: Foi também anunciado pelo Ministério do Ambiente e da Transição Energética o licenciamento de novas 38 centrais solares, a maioria no Alentejo. Estamos numa região privilegiada para o desenvolvimento desta área?

MCP: O anterior Governo, licenciou ou estava a licenciar um conjunto de projectos do tipo fotovoltaico, mas sem os inserir no âmbito de uma política energética global. Este tipo de centrais solares estariam sobretudo no Centro e Sul do país, mas estavam a aparecer de forma casuística, aleatória,  e desgarrada de aspectos muito importantes como as questões da sua ligação à rede, para o escoamento da energia produzida. Não basta produzir, temos que consegui escoar a energia numa rede capaz de a suportar.  Estas questões não estavam articuladas, não foram pensadas no seu conjunto, e isso , na minha opinião, iria comprometer, e muito, o resultado.  O discurso do actual Governo parece dar finalmente atenção a estas questões, as futuras centrais são concebidas dentro de uma estratégia que se compreende e a atribuição de licenças é disciplinada num processo de leilões sobre as respecticas concessões. Isto é um dos motivos de regozijo, e aumenta a probabilidade do PNEC se concretizar de forma positiva.

 

UÉ: Volto a insistir na questão. É o Alentejo a principal região dinamizadora no desenvolvimento da energia solar?

MPC: O papel do Alentejo neste contexto é extraordinário. Para o tipo de tecnologia que desenvolvemos na Universidade de Évora, a resposta é afirmativa, porque na área do solar de concentração, necessitamos de usar a irradiação que vem directamente do disco do sol , a chamada radiação solar directa  – que está mais presente a sul do que a norte. No Alentejo estamos no sitio certo, é como se fosse a nossa  “mina de ouro”, o que é ótimo.  Na Cátedra procuramos  oferecer as novas tecnologias, e, por outro lado, ajudar a criar o ambiente propício para  se apostar na sua utilização. Ao longo do caminho já percorrido fomos consolidando a investigação em torno destas ideias e aumentando o número de investigadores, atraindo colaboradores e alargando as parcerias com dezenas de empresas ligadas aos projectos da Cátedra. Nesta região, as empresas estrangeiras encontram um ambiente muito favorável, não só o ambiente onde utilizam as suas próprias tecnologias, como um ambiente de investigação de nível internacional capaz de proporcionar respostas e avanços muito significativos.

 

UÉ: Mais do que produzir energia temos que ter capacidade de a armazenar. É essa a diferença?

MCP: Sim, essa diferença é fundamental. Sabemos que, no futuro, vamos ter electricidade descentralizada produzida nas nossas casas, porque Portugal tem radiação solar suficiente, e com a fotovoltaico é possível ter energia, por exemplo, para carregar a bateria do nosso carro eléctrico. Mas temos também que encontrar uma capacidade grande de armazenamento associada à produção centralizada, em grandes centrais. As centrais que estudamos e propomos na Cátedra – termoeléctricas  -  não armazenam electricidade mas sim calor, com fluído que está entre 540ºC ou 560ºC, para ser chamado a produzir vapor e, portanto, electricidade através da turbina a que estará ligado em qualquer altura, mesmo fora das horas de sol. Em geral as empresas estrangeiras que trabalham connosco têm as suas próprias tecnologias, que querem melhorar e desenvolver aqui, e sobretudo querem, no futuro, reunir as condições ideias para a sua aplicação e comercialização. Em Portugal só agora parece que estas ideias começam a estar contempladas  (PNEC). Foram décadas de espera, só agora parece que vamos de facto ter uma porta aberta para o desenvolvimento das nossas propostas e, certamente as empresas portuguesas vão começar finalmente a movimentar-se nesse sentido. 

 

UÉ: A questão da mobilidade urbana é um tema central quando falamos em cidades do futuro, considera que estamos no bom caminho neste domínio?

MCP: Queremos desenvolver e produzir mais electricidade por via não poluente. Todos estes conceitos levam à mobilidade limpa, a “eléctrica”, portanto, quanto mais electricidade limpa obtivermos, mais “limpas” vão ser as novas soluções e as cidades. A Cátedra tem estado a percorrer esse caminho. Mas também é importante, enquanto sociedade, mudar os nossos hábitos, porque não podemos pensar que os veículos eléctricos individuais, vão ser solução para todos os problemas no que respeita à mobilidade urbana sustentável. Temos de pensar, sobretudo,  nos transportes colectivos eletcricos e de qualidade. O mais importante aqui é ter uma atitude mais inteligente e mais equilibrada em relação à necessidade e à forma como nos deslocamos. Temos que aprender a olhar melhor para o problema a montante, organizar as cidades de uma forma mais eficiente, reduzir a necessidade de nos deslocarmos e juntar tarefas para reduzir o número de deslocações etc. Outro assunto na ordem do dia é a inteligência artificial  e as redes inteligentes. Também aqui será necessária muita energia, mas o interessante é que a podemos produzir cada vez mais de uma forma equilibrada e sustentável.

 

UÉ: A ideia é colocar a questão do desenvolvimento sustentável na ordem do dia!

MCP: O papel da Ciência para o desenvolvimento sustentável é essencial. A adopçao de modelos de sustentabilidade é determinante. Defendo que as Ciências Exactas,  devem direccionar grande parte da investigação para esta área em concreto. Também as demais disciplinas do conhecimento, genericamente designadas por Humanidades. Estou certo de que esta ideia provocaria um efeito mobilizador e motivador nos esforços que temos que fazer em conjunto para moldar os nossos padrões de comportamento nesta área crucial para a nossa sobrevivência.

 

UÉ: Vamos ter então confiança no futuro.

MCP: Eu tenho, sou optimista e acho que o futuro só pode ser melhor! As Energias Renováveis terão um papel importantíssimo e serão essenciais para a Sustentabilidade. Sem esta não teremos esse futuro melhor!

Publicado em 28.06.2019
Fonte: GabCom | UÉ